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AS NARRATIVAS DE ANNA SUI

  • Lina Quintella
  • 27 de fev. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 28 de fev. de 2024

Grande nome no meio fashion, Anna Sui é reconhecida pela criação de peças excêntricas, em estilo vintage e grunge, caracterizadas pela aplicação de elementos antigos e alternativos ao streetwear contemporâneo. A originalidade das coleções é resultado da personalidade coolhunter da designer (pesquisadora atenta às tendências, ao fluxo social das ruas e das redes), mas também se deve ao seu vasto conhecimento de moda e, principalmente, ao seu gosto por literaturas.

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Como quase todos os “prodígios” da moda, Sui nasceu em berço de ouro, descendente de uma dinastia nobre e herdeira do fundador da mais popular escola de literatura do Império Qing. Essa configuração familiar favoreceu a sua jornada e, com livre acesso à cultura, ela optou por seguir carreira na moda, prestando homenagens literárias ao investir na exibição de coleções que costuram o mundo fashion ao mundo ficcional.

Três décadas depois de sua estreia, Sui deu claras demonstrações dessa costura ao apresentar a coleção de outono de 2024, intitulada “WHODUNNIT!!!”, com um desfile na icônica livraria The Strand, para a New York Fashion Week. O título e a escolha do lugar serviram de pistas que guiaram os espectadores e a imprensa ao tema da coleção, preparando o público para uma passarela de influências literárias. Para apresentá-las, o evento se dividiu em dois momentos, dois universos ficcionais diferentes, ou dois blocos narrativos unidos pela assinatura Sui. 

Abriu-se o desfile com uma paleta quente e terrosa, em tons vibrantes de laranja e marrom, inspirada nas cores usadas pela ceramista Clarice Cliff. Ao referir-se a esses tons outonais, Sui os descreveu desde outra perspectiva sensorial: “tons de marmelada, canela, curry, mostarda e chá rosa, misturados com tabaco, caramelo e chocolate!”. Sem dúvida, as vestes coloridas operam narrativas por meio de sensações e sinestesias, mas a evocação do paladar, além de aludir às peças de Cliff (louças de chá), foi mais uma ativação do clima que o evento pretendia evocar, aludindo à burguesia intelectual ou à nobreza que se apresentam nos dois universos literários resgatados pela coleção.
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Enquanto as vestes escureciam ao marrom, surgiam referências aos romances com whodunnit (comum em romances policiais, é um recurso narrativo que consiste na elaboração de um acontecimento que desencadeará um percurso investigativo), transportando os espectadores para o universo charmoso e nostálgico das “séries de detetive” dos anos 90. A inspiração não foi Allan Poe ou Conan Doyle, mas Agatha Christie e, especificamente, a personagem Miss Marple.
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Miss Marple é uma mulher idosa que habita uma pequena aldeia inglesa, adora jardinagem e tricô, toma chás e se veste com roupas senhoris. Apesar da rotina aparentemente tranquila, sua inteligência e raciocínio lógico afiados resolvem os casos criminais mais difíceis, sempre que a polícia falha. Por isso, o desfile apresenta boinas, tweeds, sobretudos (que fazem lembrar o universo detetive chique, inglês e londrino), mangas cobrindo todo o braço, ocultando propositalmente as mãos (o mistério policial), lenços, broches, crochê, fair isle sweater (itens de grandpa core) e, principalmente, as “Bolsas de vó” e as “bolsas maleta” que Sui gosta: “Miss Marple com sua icônica bolsa Gladstone”.

Esse microcosmo do desfile, fiel a si mesmo, evolui para o espectador como se ele concluísse a leitura de um livro de Agatha Christie, desvendando, através das roupas (peças-pistas), o mistério inicial, o tema proposto pelo primeiro bloco narrativo apresentado por Anna.

Já o segundo bloco é introduzido por uma paleta antagônica, em tons de azul Bristol, creme e preto, com padrões inspirados na arte Art Nouveau de Aubrey Beardsley. O fechamento e o esfriamento da cartela cromática prenunciaram outra disposição literária, mais introspectiva e complexa. Qual seria a grande inspiração para essa atmosfera blue?
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Virginia Woolf é a resposta. Pensar a conexão entre a autora e a moda é exercício que está em alta. Isso não ocorre apenas pela popularização das anotações pessoais dela (resoluções de ano novo ou diários), mas pela crescente revisitação da revolução social e indumentária do Bloomsbury Group, além do interesse muito recente do público leitor pela moda que se apresenta na obra literária de Woolf.
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Na literatura de Woolf, roupas são como corda para o “nó” existencial de personagens às voltas com seus avessos. Exemplo disso é O vestido novo, conto escrito durante o processo criativo de Mrs. Dalloway, em que a personagem Mabel Waring é tomada por uma angústia autodestrutiva, reparando-se num vestido amarelo que ela mesma escolhera para ir ao evento na casa de Clarissa Dalloway. Ana Carolina Mesquita, tradutora do conto para o português brasileiro, comenta que a tônica do texto já se evidencia no sobrenome da personagem principal: a pronúncia equivale à da palavra "wearing", gerúndio do verbo "vestir-se", em inglês. Ao mirar seu reflexo, Mabel constata a sua “existência crepuscular em que nada havia de muito claro nem de muito ousado”. A Strand, lugar escolhido por Sui para a NYFW, e a Biblioteca de Londres são espaços que servem aos devaneios de mudança dessa personagem: “caminharia pela Strand [...], e de súbito se tornaria uma nova pessoa”.

para levar na bolsa:


Os acessórios da coleção da designer também se destacaram enquanto conexões com a Literatura. São notáveis as sacolas de livros, em estilo semelhante à ecobag, e as gargantilhas com correntes de fita preta e pingentes com camafeus, como usavam alguns grandes nomes da literatura.

Finalmente, o ar noturno e escuro predominou no desfile e a passarela foi tomada pelas roupas de noite da coleção, que abraçaram o glamour e a sofisticação dos bailes dos anos 30, com brocados metálicos e elementos brilhantes, canutilhos e lantejoulas. Veludo, seda e malha para um toque de luxo discreto.
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A passagem de um bloco ao outro também parece crepuscular, mas não ao modo negativo e deprimente, como no conto de Virgínia. Pelo contrário, a coleção feminina é assertiva na construção do ar de empoderamento e de libertação de caráter intelectual e por via mesmo da moda. As mulheres que caminham de preto pela passarela comprariam sozinhas as suas próprias flores e solucionariam questões enigmáticas.

Apesar dos tons frios impressos nas vestes do segundo bloco, no delicado chiffon enrugado, no veludo cotelê texturizado..., ele não contradiz ou se sobrepõe ao primeiro bloco do desfile. Elementos do primeiro estão presentes no segundo. Aquilo que encontra continuidade e persiste, fazendo-se presente em cada uma das “partes” qual um fio condutor, configura o tema do “todo” do desfile, a proposta da coleção e a assinatura/estilo de Sui. Exemplo disso é o visual retrô (que abraça o ressurgimento de óculos de armação fina, a boina, meias Argyle até o joelho, suéteres e cachecóis), presente em todos os blocos.

O novo grunge de Anna aproveita o fascínio recente pelo estilo librarian e geek chic (estéticas em ascensão no streetwear, que ela soube ler e aplicar) e o mescla ao grandpa core da inteligentíssima Miss Marple, em tons de Woolf.

Mais do que a reprodução de discursos literários, a transposição de linguagem da literatura para a moda não se configurou meramente como uma “ilustração dos escritos”, mas como reflexão sobre eles, como ecos e interlocuções que fertilizam a tessitura do diálogo inter-áreas. “WHODUNNIT!!!” é um novo texto que conversa com as obras de Agatha Christie e Woolf, inspirando-se nelas e incorporando-as como referências. Assim, a designer compartilha seus gostos estéticos e literários por meio das narrativas que ela mesma cria, com as roupas que entrega ao mundo para serem usadas e lidas.
 
 
 

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