QUEM FOI NANCY CUNARD, A TRÁGICA POETA QUE INSPIROU COLEÇÕES DA SAINT LAURENT
- Lina Quintella
- 5 de fev. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 6 de fev. de 2024
Continuando a tradição de YSL (de muitas criações com inspirações literárias), há dois anos, Anthony Vaccarello, atual diretor criativo da Maison, apontou sua inspiração para a coleção de Inverno 22: o figurino da poeta Nancy Cunard (1896-1965). A coleção rendeu comentários positivos e nos deu a oportunidade de conhecer essa editora, tradutora e poeta de origem britânica, silenciada e invisibilizada pela classe artística e intelectual majoritariamente masculinas em que circulou.

Herdeira de uma companhia de navegação que lançou os primeiros transatlânticos do mundo, desde nova Nancy esteve inserida na aristocracia intelectual de Londres, graças à anfitrialidade de sua mãe (que promovia jantares suntuosos). Motivada pelo romancista George Moore, um amigo especial da família, Cunard frequentou escolas particulares em Londres, Alemanha e Paris, onde se tornou amiga de Iris Tree, Dianna Manners, Osbert Sitwell, Augustus John e Ezra Pound.
Referindo-se a si mesmos como "Corrupt Coterie", esse grupo de jovens aristocratas rebeldes passava as noites em cafés parisienses discutindo política e poesia, o que provavelmente impulsionou Cunard a escrever e a publicar.
Alta, com mais de 1.80 m, sem enquadrar-se no padrão de beleza da época, a autora projetou para si uma persona hipnotizante, com traços andrógenos, personalidade boêmia, potente e elegante, com a qual performou o papel de escritora parisiense e ganhou espaço na alta-roda intelectual e artística da cidade, composta por homens.
A nova identidade visual espelhava a atmosfera da primeira fase de sua obra poética (1921 - 1925), repleta de combinações inesperadas. Mais sinestésico, o primeiro período de sua poesia parecia responder ao ímpeto jovem e apaixonado de abarcar extremos, de não deixar nada descoberto, de buscar o impossível, alcançável apenas no domínio poético. Unindo “o abstrato com um certo rude” (“In the Studio”), as disposições imagéticas dessa poesia moderna, voltando-se às paisagens naturais, aludiam às "paisagens internas" e às diversas disposições anímicas de um eu-poético que se manifestava em primeira pessoa.
O desejo do “síncrono” e o entendimento do paradoxo como potência vital deslizavam aos looks com um quê de extravagantes. As ombreiras destacadíssimas e as brincadeiras com “fronteiras de gênero” foram algumas das características desse visual, que Vaccarello soube identificar e explorar, inspirando-se para a criação de 2022. A preferência de Nancy pelo pulseirismo, marca de sua intensa ousadia, combinada ao cabelo curto (em "Eton crop" ou, no Brasil, "joãozinho"), às vestes sóbrias, em couro e alfaiataria, proporcionava contraste interessante, mas sério, numa combinação chocante, que a manteve temporariamente sob holofotes.

Bastante enturmada com dadaístas e surrealistas de Paris, entre muito fumo e bebedeiras, escreveu poemas tão experimentais quanto o seu visual e foi figura importante para as pequenas revistas de conhecidos. Sozinha, publicou ensaios e coleções como Outlaws (1921); Sublunary (1923) Parallax (1925); Poems Two (1925); Relève into Maquis (1944) Man=Ship=Tank=Gun=Plane: A Poem (1944).
À frente de sua época, decidida a realizar uma histerectomia e exercendo livremente sua liberdade sexual, Nancy teve relacionamentos conturbados com grandes escritores, como Aldous Huxley, T. S Eliot, Pound... Mas, ao mesmo tempo em que firmaram seu vínculo com o universo literário, essas relações fortificaram comentários negativos e percepções machistas a respeito da poeta. A crítica passou a reduzir sua escrita à suposta influência de seus amantes (Parallax foi tachado como plágio de The Wast Land, de Eliot). Isso inviabilizou sua circulação, anulou seu público leitor e remodelou sua imagem pública.
O privilégio, a atitude empoderada e o indiscutível talento para as Letras não se sobrepuseram aos efeitos violentos do patriarcado e dos discursos masculinistas. O nome de Nancy esteve sempre à sombra daqueles homens bem-sucedidos com quem se relacionou.
No entanto, é provável que, na contramão dos burburinhos, Nancy os tenha inspirado e orientado, já que ela mesma editou e publicou alguns de seus parceiros, por meio de seu editorial Hours Press (fundado em 1928) - conhecido pelos belos designs e pela produção de alta qualidade. Convencida de que poderia imprimir e publicar seus próprios livros, aos 32 anos Cunard instalou uma prensa manual e velha (uma Mathieu belga, de 200 anos, adquirida de uma editora reconhecida, a Three Mountains Press), e que chegou a ela abastecida com a fonte Caslon Old Face e papel Vergé de Rives. Com esse equipamento, ela materializou os primeiros livros. Como gráfica, foi muito autodidata (embora tenha recebido orientações de tipografia de Leonard e Virginia Woolf) e, assim, estreou Samuel Beckett com o Whoroscope (1930); também publicou Bob Brown, Pound, Norman Douglas, Richard Aldington e Arthur Symons, John Rodker, Roy Campbell, Harold Acton, Brian Howard e Walter Lowenfels, Havelock Ellis...



Sobre sua figura ter servido de inspiração para os ex-parceiros, cogita-se que algumas das personagens criadas por eles são alusões a sua pessoa. Exemplos disso seriam Myra Viveash, em Antic Hay (1923), e Lucy Tantamount, em Point Counter Point (1928), de Aldous Huxley. Também a “aspirante a poeta, de cabeça vazia”, dos primeiros rascunhos de The Waste Land (uma alfinetada de Eliot). Dizia Elsa Triolet, companheira de Louis Aragon, a respeito dos textos do poeta: "On parle toujours des poèmes que Louis a écrits pour moi. Mais les plus beaux étaient pour Nancy". William Carlos Willians, se não escreveu sobre Nancy, ao menos expunha uma foto dela em seu escritório e declarava que ela era um dos "maiores fenômenos da história".

Uma vez queimado o filme de Nancy no meio literário, até o figurino da autora passou a encorpar a chacota: ao falar de Outlaws (1921), um crítico literário a acusou de hermetismo e, supostamente incapaz de entendê-la, passou a tecer considerações sobre o chapéu que ela usava. Além dos turbantes (típicos da década de vinte/trinta), chapéus e adereços de cabeça eram muito usados pela poeta:

Ao engatar relacionamento com o pianista Henry Crowder, com quem esteve por mais de oito anos, Nancy se interessou, não apenas pela arte e cultura africanas (daí as grandes pulseiras de marfim africano), mas pelo ativismo antirracista que passou a nortear suas publicações. A reação negativa da família e da mídia foi o que impulsionou motivou o Black Man and White Ladyship, An Anniversary (1931), um ensaio furioso em que ela condenava veementemente o racismo. No mesmo período, editou e publicou uma antologia que lhe trouxe bastante visibilidade, a Negro (1934) - com escritores integrantes do Renascimento do Harlem (Harlem Renaissance), mas invisibilizados pelo público e pelo meio literário/artístico, porque negros. A publicação lhe rendeu muitas ameaças de morte.




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