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DRUMMOND E A MODA

  • Lina Quintella
  • 22 de jan. de 2024
  • 6 min de leitura

Na vida, há três certezas: a de que nascemos, a de que partiremos e a de que muitos ignoram o grande gosto e interesse do poeta itabirano pela Moda.


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Contrariando a impressão popular e diversos estudos acadêmicos (que defendem a desaparição da Moda em narrativas e poéticas do século XX), em Drummond a Moda se manifesta com frequência.


Com um humor equivalente a uma moral, Drummond foi mestre no engenho da poesia que vincula trajes e adornos aos modos e à representação caricata para fundamentar suas críticas e sátiras. Falando das vestes, o poeta denuncia aspectos sociais, filosóficos e linguísticos, como se vislumbrasse uma continuidade entre a fisionomia e o caráter dos personagens vestidos (que metonimicamente representam papéis sociais, classes, sistemas e o próprio universo gauche). Essa “intuição fisionômica” adivinha, sob as harmonias superficiais da forma, as revoltas profundas da matéria humana.


Fora o conhecido poema “Eu, etiqueta”, publicado em Corpo (1984), Alguma poesia (1930) e A Rosa do Povo (1945) são os maiores exemplos da manifestação desse gosto pela Moda.

 

para levar na bolsa:


Abre-se o primeiro livro publicado pelo poeta, Alguma poesia, com o “Poema de sete faces”, voltado ao autorretrato ou a autocaricatura. Nele, dá-se a primeira aparição do que viriam a ser “elementos da Moda” recorrentes na poética drummondiana, bem como em outras obras modernistas e modernas, como as de Oswald e Murilo Mendes: os óculos e o bigode, cuja aparição alastrada pelo século XX – era de “rostos rapados” – representava um mundo antigo, posado a intelectual, parnasiano.


Embora já demonstre a disposição filosófica da poesia moderna, com indagações metafísicas e existenciais, esse primeiro livro manifesta a influência do modernismo nos seus registros anticonvencionais, de gosto pelo instantâneo, aliando-o ao estado reflexivo. Com isso, surgem poemas como “I – Belo Horizonte”, de “Lanterna mágica”, moderno e esquisito. Nele, numa espécie de contemplação ou de registro da relação sujeito-memória-cidade, o discurso forma imagens inusitadas e críticas, cuja estranheza é corroborada pelo contraste entre as vestes e o espaço citadino, já de si caduco.

 “Fuga” é outro poema em que a Moda aparece, esclarecendo a relação entre traje, status, e a moral e a respeitabilidade que envolvem o seu uso. Em primeira pessoa, o caricaturista torna-se o caricaturado, “fantasiando-se” e descrevendo sua indumentária, a fim de tornar evidente o ridículo ideológico de um personagem que representa muitos. O que atesta a relação definitiva entre o uso da roupa e a expectativa da diferenciação de classes e tratamentos é a fala do eu-poético-poeta: “Povo feio, moreno, bruto,/ não respeita meu fraque preto”.

Em “Nota social”, outro elemento muito caro à poética drummondiana aparece: o chapéu. Nesse caso, o chapéu de palha representa o pequeno público rural, que acompanha um evento político espalhafatoso e alegórico que agita a pequena cidade, atrapalhando o trânsito, transtornando espaços e o que seria o seu “movimento habitual”. O acessório simples é o elemento projetado para o esboço caricato do povo, humilde, mas alienado, néscio, que ignora o (canto do) poeta, a poesia e a natureza invisibilizada, aprisionada pelos panfletos publicitários, em prol do político-capitalístico ovacionado.

Embarcando em tendência semelhante à de La Dernière Mode (revista literária que Mallarmé cria e a edita, assumindo na linguagem todos os meneios e arrebiques do vestuário que comenta), Drummond se aventurou a comentar Moda, mais diretamente, em suas crônicas e publicações em periódicos. Dissertou sobre vestidos, casacos..., mas os acessórios de cabeça pareciam chamar-lhe mais a atenção, a ponto de neles se deter constantemente. Avaliando a moda mineira de BH, em 1930, o autor opinou em crônica publicada no suplemento “Minas Gerais”:

Traço diferencial do inverno de 1930: a boina. Todas as meninas estão andando de boina caída na cabeça, e estão cada vez mais irresistíveis. Há de todas as cores (afinal o inverno não é lá tão cinzento) e mesmo de várias cores cada uma, e todas interessantíssimas, como tudo que é enfeite ou invenção do bicho-mulher, criado para virar o juízo do bicho-homem, o mais ridículo e o menos feliz dos bichos…

Assinado pela redação do periódico Estado de São Paulo – Estadão – o artigo “O poeta e o estilo”, publicado em 2011, lembra-nos que não escapou ao poeta “tampouco o revolucionário chapéu jonny-cap”. Sob o pseudônimo Crispim, ressaltou a aderência generalizada dessa espécie de boina masculina, que servia a diversos estilos e aparências: “grave ou ingênuo, correto ou amolecado, misterioso ou simples”. O interesse pelos acessórios de cabeça talvez justifique ou esclareça a aparição recorrente do elemento chapéu em todo o conjunto de sua obra poética.

Drummond, ainda em sua estreia, insere a poesia na temática da guerra e confere às roupas aparição importante. Dessa vez, as vestes se conectam às mulheres: em “Outubro 1930”, são as mulheres que se intimizam com as roupas, materializam nelas o sonho romântico, com a costura dos bolsos nas fardas para fotos de namoradas, enquanto “Pelo Brasil inteiro há tiros, granadas,/ literatura explosiva de boletins”. A Moda agrega, no poema, um nexo complexo entre amor, conflito e coisificação.

A Rosa do Povo se aprofunda ainda mais na temática da guerra, seja sobre o contexto da Segunda Guerra ou sobre a conjuntura político-social brasileira, do Estado Novo getulista. Curiosamente, é nesse livro que “reflete um tempo” que a Moda mais aparece. Ela está presente desde os poemas de abertura, como é o caso de “Procura da poesia”, em que surge enumerada como um dos temas dispensáveis para a feitura de um poema, associada aos luxos da elite. Além dele, também “O medo”, “Nosso tempo”, “Equívoco”, “Assalto” e “Resíduo” são notáveis, mas dois outros poemas, repletos de Moda, são mais conhecidos e destacam-se para os leitores: “O caso do vestido” e “A flor e a náusea”.

Com visada crítica ao patriarcado, “O caso do vestido” é um dos poucos textos em que uma veste é central no poema, dando a ele o seu título. Nele, um vestido pregado na parede é o elemento estranho que dá inicio ao arco narrativo, levando-nos a conhecer o drama trágico de emoções amorosas e familiares.

Coroando a tendência participante da poesia do autor, “A flor e a náusea”, se inicia com a caminhada urbana do eu poético que vai à rua “Preso à minha classe e a algumas roupas”. Apesar de reconhecer-se enquanto parte integrante da caduquice burguesa, tediosa e “suja”, urbana e capitalística, as roupas do eu-poético são brancas e o destacam cromaticamente na rua “rua cinzenta” por onde anda. As vestes alvas o distinguem como espécie de “sujeito eleito” ou transfigurado, messiânico ou louco, incendiário e purificado. Aquele sujeito é o único capaz de contemplar o acontecimento extraordinário, anunciar sua grandiosidade, e ousar sentar-se no chão da capital do país, no horário mais caótico, para acarinhar a nova forma que surge: a “flor”.

Essa atenção do autor à Moda inspirou o estilista Ronaldo Fraga a criar uma de suas mais festejadas coleções, “Todo mundo e Ninguém” (2005), que trouxe à passarela o entrelace drummondiano entre Moda e tempo. Foi Fraga o primeiro a destacar que “em toda obra de Drummond tem um vestido escondido, tem um terno escondido [...]”. O desfile causou grande impacto e surpresa na época, porque, além de ninguém ter reparado na improvável relação entre o poeta e a Moda, a impressão geral sobre a aparência de Drummond destacava sua fisionomia insossa. Até o próprio Fraga, em entrevista concedida à Folha de São Paulo, no ano do desfile, assumiu ter se inspirado na poética de Drummond e não em sua figura de “servidor público”.

No entanto, refutando a impressão popular de que o escritor parecia ter sido sempre assim, rendido à sisudez do guarda-roupa, contido e insosso, alguns registros provam o contrário. O guarda-roupa de Drummond era interessantíssimo: contava com um acervo invejável de camisas, que botam os amantes da Moda “comovidos como o diabo”.
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Os detalhes das roupas do poeta revelam, na sua elegância sóbria, a personalidade inquieta, dissimulada por uma “máscara” reservada e discreta. As composições inusitadas transparecem o humour, o lado galhofeiro do homem que dava cambalhotas no solo, passava trotes ao telefone e tirava “magicamente” a dentadura para espantar os netos.

Além de imprimir-se em seus trajes, Drummond fazia uso, com naturalidade, de elementos de difícil casamento, como o animal print e os atualíssimos “tecidos de pele” (naturais ou sintéticos: veludo, camurça ou suede), o que denota uma habilidade singular com relação ao manejo dessa linguagem (a Moda).
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Suas roupas quase sempre espelhavam a poética paradoxal, melancólica e humorada, de combinações insólitas e sério-jocosas.

Desfrutando de uma relação lúdica e leve com a Moda, o poeta experimentava diferentes texturas, equilibrando o sério e o irreverente e inserindo estampas no traje social, como fossem uma piscadela para nós, seus espectadores, leitores e admiradores, que o observamos com gosto através dos tempos.
 
 
 

1 comentário


Larissa B
Larissa B
26 de jan. de 2024

Esse texto acabou de me proporcionar um evento canônico: preciso descobrir como meus poetas favoritos se expressavam por meio da moda. Incrível a proposta, ansiosa por mais.

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