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  • Lina Quintella

QUEM FOI NANCY CUNARD, A TRÁGICA POETA QUE INSPIROU COLEÇÕES DA SAINT LAURENT

Atualizado: 6 de fev

Continuando a tradição de YSL (de muitas criações com inspirações literárias), há dois anos, Anthony Vaccarello, atual diretor criativo da Maison, apontou sua inspiração para a coleção de Inverno 22: o figurino da poeta Nancy Cunard (1896-1965). A coleção rendeu comentários positivos e nos deu a oportunidade de conhecer essa editora, tradutora e poeta de origem britânica, silenciada e invisibilizada pela classe artística e intelectual majoritariamente masculinas em que circulou.


Herdeira de uma companhia de navegação que lançou os primeiros transatlânticos do mundo, desde nova Nancy esteve inserida na aristocracia intelectual de Londres, graças à anfitrialidade de sua mãe (que promovia jantares suntuosos). Motivada pelo romancista George Moore, um amigo especial da família, Cunard frequentou escolas particulares em Londres, Alemanha e Paris, onde se tornou amiga de Iris Tree, Dianna Manners, Osbert Sitwell, Augustus John e Ezra Pound.

Referindo-se a si mesmos como "Corrupt Coterie", esse grupo de jovens aristocratas rebeldes passava as noites em cafés parisienses discutindo política e poesia, o que provavelmente impulsionou Cunard a escrever e a publicar.

Alta, com mais de 1.80 m, sem enquadrar-se no padrão de beleza da época, a autora projetou para si uma persona hipnotizante, com traços andrógenos, personalidade boêmia, potente e elegante, com a qual performou o papel de escritora parisiense e ganhou espaço na alta-roda intelectual e artística da cidade, composta por homens.

A nova identidade visual espelhava a atmosfera da primeira fase de sua obra poética (1921 - 1925), repleta de combinações inesperadas. Mais sinestésico, o primeiro período de sua poesia parecia responder ao ímpeto jovem e apaixonado de abarcar extremos, de não deixar nada descoberto, de buscar o impossível, alcançável apenas no domínio poético. Unindo “o abstrato com um certo rude” (“In the Studio”), as disposições imagéticas dessa poesia moderna, voltando-se às paisagens naturais, aludiam às "paisagens internas" e às diversas disposições anímicas de um eu-poético que se manifestava em primeira pessoa.

O desejo do “síncrono” e o entendimento do paradoxo como potência vital deslizavam aos looks com um quê de extravagantes. As ombreiras destacadíssimas e as brincadeiras com “fronteiras de gênero” foram algumas das características desse visual, que Vaccarello soube identificar e explorar, inspirando-se para a criação de 2022. A preferência de Nancy pelo pulseirismo, marca de sua intensa ousadia, combinada ao cabelo curto (em "Eton crop" ou, no Brasil, "joãozinho"), às vestes sóbrias, em couro e alfaiataria, proporcionava contraste interessante, mas sério, numa combinação chocante, que a manteve temporariamente sob holofotes.
Bastante enturmada com dadaístas e surrealistas de Paris, entre muito fumo e bebedeiras, escreveu poemas tão experimentais quanto o seu visual e foi figura importante para as pequenas revistas de conhecidos. Sozinha, publicou ensaios e coleções como Outlaws (1921); Sublunary (1923) Parallax (1925); Poems Two (1925); Relève into Maquis (1944) Man=Ship=Tank=Gun=Plane: A Poem (1944).

À frente de sua época, decidida a realizar uma histerectomia e exercendo livremente sua liberdade sexual, Nancy teve relacionamentos conturbados com grandes escritores, como Aldous Huxley, T. S Eliot, Pound... Mas, ao mesmo tempo em que firmaram seu vínculo com o universo literário, essas relações fortificaram comentários negativos e percepções machistas a respeito da poeta. A crítica passou a reduzir sua escrita à suposta influência de seus amantes (Parallax foi tachado como plágio de The Wast Land, de Eliot). Isso inviabilizou sua circulação, anulou seu público leitor e remodelou sua imagem pública.

O privilégio, a atitude empoderada e o indiscutível talento para as Letras não se sobrepuseram aos efeitos violentos do patriarcado e dos discursos masculinistas. O nome de Nancy esteve sempre à sombra daqueles homens bem-sucedidos com quem se relacionou.

No entanto, é provável que, na contramão dos burburinhos, Nancy os tenha inspirado e orientado, já que ela mesma editou e publicou alguns de seus parceiros, por meio de seu editorial Hours Press (fundado em 1928) - conhecido pelos belos designs e pela produção de alta qualidade. Convencida de que poderia imprimir e publicar seus próprios livros, aos 32 anos Cunard instalou uma prensa manual e velha (uma Mathieu belga, de 200 anos, adquirida de uma editora reconhecida, a Three Mountains Press), e que chegou a ela abastecida com a fonte Caslon Old Face e papel Vergé de Rives. Com esse equipamento, ela materializou os primeiros livros. Como gráfica, foi muito autodidata (embora tenha recebido orientações de tipografia de Leonard e Virginia Woolf) e, assim, estreou Samuel Beckett com o  Whoroscope (1930); também publicou Bob Brown, Pound, Norman Douglas, Richard Aldington e Arthur Symons, John Rodker, Roy Campbell, Harold Acton, Brian Howard e Walter Lowenfels, Havelock Ellis...
 
Sobre sua figura ter servido de inspiração para os ex-parceiros, cogita-se que algumas das personagens criadas por eles são alusões a sua pessoa. Exemplos disso seriam Myra Viveash, em Antic Hay (1923), e Lucy Tantamount, em Point Counter Point (1928), de Aldous Huxley. Também a “aspirante a poeta, de cabeça vazia”, dos primeiros rascunhos de The Waste Land (uma alfinetada de Eliot). Dizia Elsa Triolet, companheira de Louis Aragon, a respeito dos textos do poeta: "On parle toujours des poèmes que Louis a écrits pour moi. Mais les plus beaux étaient pour Nancy". William Carlos Willians, se não escreveu sobre Nancy, ao menos expunha uma foto dela em seu escritório e declarava que ela era um dos "maiores fenômenos da história".


Uma vez queimado o filme de Nancy no meio literário, até o figurino da autora passou a encorpar a chacota: ao falar de Outlaws (1921), um crítico literário a acusou de hermetismo e, supostamente incapaz de entendê-la, passou a tecer considerações sobre o chapéu que ela usava. Além dos turbantes (típicos da década de vinte/trinta), chapéus e adereços de cabeça eram muito usados pela poeta:
Ao engatar relacionamento com o pianista Henry Crowder, com quem esteve por mais de oito anos, Nancy se interessou, não apenas pela arte e cultura africanas (daí as grandes pulseiras de marfim africano), mas pelo ativismo antirracista que passou a nortear suas publicações. A reação negativa da família e da mídia foi o que impulsionou motivou o Black Man and White Ladyship, An Anniversary (1931), um ensaio furioso em que ela condenava veementemente o racismo. No mesmo período, editou e publicou uma antologia que lhe trouxe bastante visibilidade, a Negro (1934) - com escritores integrantes do Renascimento do Harlem (Harlem Renaissance), mas invisibilizados pelo público e pelo meio literário/artístico, porque negros. A publicação lhe rendeu muitas ameaças de morte.
Morando temporariamente no Harlem com Henry, Nancy distribuiu seus vestidos de alta costura, muitos deles de Poiret, Worth, Molyneaux e Chanel, entre as esposas dos músicos de jazz afro-americanos que conhecia.

Com o fim do relacionamento com o músico, a péssima interação com o meio literário e a agitação do mundo pré-Segunda Guerra, a autora se tornou ainda mais extremista, extravagante e autodestrutiva. Associou-se aos movimentos de guerrilha e o tema de sua escrita rumou para o antifascismo. Posicionando-se contra a injustiça e movimentos autoritários e violentos, solidarizou-se com os sofredores do mundo. Do trabalho poético com a métrica, da rica tessitura imagética das outras fases, Nancy passou ao verso livre, ao discurso direto, para militar contra Mussolini, a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra. Convidou outros autores a se juntarem aos seus protestos literários e, desse movimento, surgiram panfletos como o de 1937, Authors Take Sides on the Spanish War, elaborado com Auden e Stephen Spender, seus amigos. Nele, ela indaga outros 200 escritores sobre posições políticas. A maioria se recusou a participar. Criou-se, portanto, com essa nova fase de sua escrita e vida, outra imagem a pairar sobre Cunard que não a favoreceu.

Excluída do meio artístico e intelectual, enfrentando problemas com o alcoolismo e incomodando socialmente e politicamente, Cunard foi internada em um hospital psiquiátrico, sob a alegação de conturbações psíquicas. Desta ação em diante, mesmo após a alta médica, sua vida declinou significativamente. Solitária e alcoólatra, pesando menos que um punhado de pulseiras, foi encontrada vagando por Paris, e, dois dias após sua hospitalização, morreu aos 69 anos, sem visitas. Desde então, sua figura segue esquecida, marginalizada, mantida bem longe do cânone literário e do público leitor de todo o mundo.

Felizmente, a Saint Laurent rememorou a "potência Nancy", trazendo às passarelas a irreverência (de quem adorava jogar tênis, na companhia descontraída de Hernest Heminguay), a ousadia (de quem experimentava, atirando-se intensamente às criações artísticas, à Moda, ao sexo e à política) e a energia imponente e sedutora da poeta modernista.
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